A MENTALIDADE RELIGIOSA E FRANCISCANA
“Doutrinas políticas ou crenças religiosas que levam os seres humanos a substituir a ‘realidade humana’ pelo ‘ideal humano’ fazem mais mal do que bem à Liberdade, à Democracia e ao Progresso da Humanidade”. Bertrand Russell, filósofo inglês.
“Não sintas pena dos pobres, acabando com os ricos. Acaba sim implacavelmente com os pobres, elevando o seu nível de vida.” George Bernard Show, escritor irlandês.
A Bíblia é, como sabemos, um documento muito controverso, escrito em uma linguagem pouco clara e cheia de contradições. Num versículo Jesus Cristo - JC é, por exemplo, pela igualdade dos homens (João 16-20), para logo à frente defender a escravatura (Lucas 12-47); ele se mostra contra os ricos (Mateus 19-23) e pouco depois aprova os juros e a riqueza (Mateus 20-29, 25-27); salva pessoas doentes e depois nega as regras da higiene (Mateus 15-20, Marcos 7-4, 8-23); se mostra conciliador e resignado (Lucas 6-27) e depois ameaça com vingança e guerra (Mateus 11-34, Marcos 3-29, 6-11); aparece pacífico e manso mas logo adiante agride os mercadores do templo com violência (João 3-15), etc. Por isso não podemos estranhar que haja tantas interpretações e correntes no cristianismo, dividido em múltiplas seitas e orientações, muitas vezes conflitantes. Não há até a seita dos cristãos crentes que seguram víboras e cascavéis nas mãos (Marcos 16-18) e que, se mordidos, se recusam a serem tratados, pois se Deus achar que eles devem morrer, que assim seja?
Nessa profusão de interpretações da bíblia, surge uma muito importante e prevalecente: a dos franciscanos.
Em 1209, fundada por Francisco de Assis, aparece a Ordem dos franciscanos, frades mendicantes que pregam o abandono das riquezas terrenas, buscando o encontro com Deus através de uma vida simples e desprendida. Fazem o voto de castidade e o de pobreza, são contemplativos, supostamente alienados das realidades da vida, vivem na mendicidade, na simplicidade, no isolamento dos conventos, no sacrifício do corpo e da alma, na resignação perante os desígnios de deus. É conhecida a oração de S. Francisco, onde ele difundiu o célebre e muito usado preceito “É dando que se recebe”.
Pouco tempo depois, em 1215, o religioso castelhano Domingos fundava a Ordem dos dominicanos, também ermitas e devotados à evangelização dos pagãos, e que teve um ilustre membro, S. Tomás de Aquino.
Estas duas ordens formaram, durante séculos, o núcleo que dominou e dirigiu a Santa Inquisição e a própria Igreja Católica.
Abraçando outra interpretação dos evangelhos e no redemoinho da luta contra os protestantes, aparece em 1539, chefiada por Inácio de Loyola, a instituição da Companhia de Jesus, dos temidos jesuítas, guerreiros e fundadores de escolas e universidades, muito disciplinados e eficientes. Devido às desavenças internas do clero católico, não conseguiram impor o seu modo de ver da religião, bem mais próximo da mentalidade prática e protestante, e perderam a luta ideológica dentro da Igreja, ficando vencedora a visão franciscana do catolicismo. Cabe lembrar aqui que o padre jesuíta Anchieta, fundador da cidade de São Paulo, ficou quatro anos confinado por problemas de suposto desvio de fé, preso pelos franciscanos e dominicanos, milenares senhores da defesa da pureza da fé e da Inquisição.
Os jesuítas, disciplinados, eficientes, produtivos, enriquecidos, muito organizados e poderosos, causaram muita inveja e foram perseguidos pelos outros religiosos e pelos governos reais, acabando por ser extintos em 1773, pelo Papa Clemente XIV, mas logo depois restabelecidos pelo Papa Pio VII em 1814.
Francisco de Assis, como Buda, nasceu rico e poderoso. Mas um belo dia resolveu distribuir aos pobres todas as riquezas, herdadas de seus pais, e levar uma vida de mendigo, que ele achava ser o modo mais cristão de viver, uma imitação da vida de Cristo, que tinha aparecido uns mil anos atrás.
As idéias e orientações das ordens mendicantes, tomaram grande importância no ideário das pessoas e se tornaram uma das principais correntes do cristianismo, aliás preponderante, pois se fixou como paradigma e modelo do verdadeiro cristão.
O franciscanismo, com suas raízes no budismo e hinduísmo, condena a riqueza e os ricos, idolatra a pobreza, prega a distribuição dos bens e a esmola, endeusa o miserável e o pobre de espírito, faz voto de castidade, acusa o sexo como um chamamento do diabo, não trabalha e mendiga para viver, recusa os bens e prazeres terrenos e leva uma vida de sacrifício e de alienação do mundo. A passagem transitória por este mundo é considerada um “vale de lágrimas e de sofrimento”, pois só seguindo o modo de vida de Cristo e a palavra de deus se obtém a salvação, a vida eterna e o paraíso. Bom e confortável é o que nos aguarda no céu depois do sofrimento e finalmente da morte, nada de bom poderemos esperar desta vida terrena.
Essa mentalidade franciscana, imposta a ferro e fogo pelo terror da Santa Inquisição, durante mais de quinze séculos da Idade Média e da Contra-Reforma, ficou entranhada na mentalidade dos povos, principalmente dos latinos do sul da Europa. Assim se instalou um dos principais sistemas de contradições na mentalidade popular: por um lado há o chamamento da vida e dos prazeres terrenos; por outro, a obrigação de se seguir a conduta de alienação franciscana e cristã.
Uma dessas contradições que aparece frequentemente no modo de pensar das pessoas com vinculação religiosa é o problema da existência da riqueza e do ideal de pobreza.
Os teóricos protestantes primitivos (Calvino, Lutero, e outros), como nos mostra o genial sociólogo alemão Max Weber, consideraram a riqueza como um objetivo natural e válido para as pessoas, sendo o importante o que se faz com os bens e não a sua existência. É o espírito da pré-destinação dos calvinistas: se você consegue a riqueza, por meios lícitos, então é porque Deus assim quis que fosse, é um premio à sua perseverança e ao seu esforço laboral.
Já os dogmas católicos e franciscanos condenam peremptoriamente a riqueza e os juros, confirmado pelo Concílio de Nicéia que, no século XI, tornou pecaminosa a usura, castigada com a morte na fogueira. Assim, se você comprasse um produto por 100, teria de vendê-lo também por 100, ou então podia ser morto no braseiro, acusado de agiota, de comerciante... Essa decisão teve embasamento nas contraditórias escrituras, onde Cristo se mostrou contra os ricos, repetindo que “é mais fácil um camelo (a tradução correta parece ser “corda”) passar pelo buraco duma agulha do que um rico ir para o céu “... Interessante que o Alcorão muçulmano copiou e segue em grande parte essas mesmas idéias do franciscanismo...
Mas a verdade é que Cristo e seus seguidores eram alienados dos valores terrenos, pouco se importavam com a vida real na Terra, que aliás era, nesses tempos, horrível, com doenças, sofrimento, fome, ignorância, violência, escravidão, despotismo, guerras, etc. Nada mais tentador para as mentes desses difíceis tempos que criar uma fuga, imaginar um lugar ideal, um Paraíso, um Céu, onde tudo fosse conforto, tranqüilidade e beleza. Daí a grande contradição que permanece na mentalidade das pessoas, entre essas idéias recebidas desses tempos e a realidade da vida. Hoje como sempre, todos anseiam por melhorar de vida, com boas casas, confortáveis automóveis, comida farta, belas roupas, muita diversão, cultura, viagens, dinheiro em grande quantidade, bons hospitais, escolas de qualidade para os filhos, e tudo isso aqui acessível na Terra e não depois da morte... Não é isso tudo um objetivo claro de riqueza? Não é também a ideologia do comunismo uma proposta de enriquecimento coletivo das pessoas, dum futuro paradisíaco na terra, numa liberdade idílica? Joga-se nas loterias e bingos como nunca, sempre com o fito da riqueza fácil... Todos desejam ser ricos mas, no entanto, têm vergonha de expressar esse desejo! Pois que desejar ser rico é um terrível pecado no catecismo católico! Mesmo assim não se desdenha poder gozar esses confortos no outro mundo, por isso convém dar esmolas e ir à igreja de vez em quando, para marcar uns pontos no prontuário celeste... É essa a razão principal do avanço e enriquecimento das seitas cristãs neo-pentecostais sobre as tradicionais seitas religiosas: sem subterfúgios e claramente, elas prometem o êxito nos negócios e na vida amorosa e familiar aqui na Terra, desde que se frequentem as reuniões e se paguem os devidos dízimos...
Aqui temos, a meu ver, um dos impasses mais importantes da nossa mentalidade escolástica e religiosa. Continuamos afirmando como nosso ideal de vida o modelo franciscano (Cardeal Arns, frei Beto, frei Boff, Betinho, Madre Teresa de Calcutá, os santos, etc.), com os seus votos de pobreza e de castidade, de despojo e indiferença pelas riquezas, mas por outro lado, todos nós corremos naturalmente atrás do dinheiro, do conforto, do luxo, das viagens. É uma situação dúbia, que leva a frustrações imensas e à hipocrisia, que pode chegar à desorientação, ao crime, ao desespero, mesmo à loucura. Cristo lembrou que os pássaros comem sem plantarem (Mateus 6.26). Nessa mesma linha de atuação dos monges budistas (não esqueçamos que Buda pregou essas mesmas ideias mais de 600 anos antes de Cristo!), os franciscanos mendicantes não estão orientados para a produção de riquezas mas sim para a recolha dos produtos existentes, para a distribuição dos bens dos outros, dos “trouxas” que produzem! Eles nada constroem, pedem esmola, mendigam comida dos que plantam! Na verdade, não poderiam nunca servir de modelo de vida do povo em geral. Fazer o voto de pobreza equivale ao doente que faz tudo para continuar doente e que considera a miséria como algo definitivo e aceitável... E se todos fossem como eles, pobres, contemplativos, improdutivos, a quem iriam pedir comida e dinheiro para se manterem vivos? O que aconteceria com a pregação dos franciscanos se acabasse a miséria? Já pensaram como seria um país governado por franciscanos ou beneditinos? Certamente não seria muito diferente dos governos dirigidos pelos cruéis talibans e fanáticos ditadores muçulmanos, como por exemplo o miserável Afeganistão... Aliás já tivemos na Europa a comprovação do efeito danoso desse domínio dos religiosos na governança, quando o poder da igreja era total e todo o ensino estava sob controle da Igreja, a economia ficou estagnada, a mentalidade científica reprimida, a vida era de sofrimentos, durante a terrível Idade Média, a chamada “noite dos dez séculos”...
É interessante que se ouve, por vezes, pessoas clamando que os males do mundo atual são devidos ao progressivo abandono das religiões, à existência de “pouco deus nos corações”. Pelo contrário se pode verificar na História que quanto mais deus estava presente no espírito dos povos, quanto mais escolástico e supersticioso é o pensamento das pessoas, maiores eram as desgraças que eles sofriam. Quanto mais religião franciscana, mais pobreza e ignorância... Portanto, a História comprova que quanto menos deus melhor, o que não se deve confundir com a falta de regras e princípios morais, que é outro assunto que trataremos depois.
A História moderna mostra que o grande desafio para os governantes eficientes não é como dividir a riqueza, onde todos ficam pobres, mas sim como aumentá-la, como multiplicar os pães, como tornar todos...ricos! O enfoque deve estar nesse lado positivo do problema, de como melhorar a eficiência da economia e do trabalho, aperfeiçoar a inteligência e a cultura da população, melhorar a qualidade dos produtos, buscar a excelência nos serviços, aumentar as riquezas, os bens, o nível de vida, a produção sustentada, a poupança. Distribuir as riquezas é fácil; o difícil é criá-las e multiplicá-las. Tivemos há pouco tempo uma prova concreta dessa contradição, com o fim do comunismo, que, cerceando terrivelmente as liberdades e a iniciativa pessoal, dividiu as riquezas disponíveis nas sociedades, fez uma distribuição igualitária da renda dos trabalhadores, transformando todos em pobres, mas que felizmente acabou sendo rejeitado pela população e que desmoronou sem luta em quase todos os países onde se implantou.
Ficou assim clara também a constatação das semelhanças entre o cristianismo escolástico e o comunismo totalitário, conforme muito bem observou Bertrand Russell no seu livro “História da civilização ocidental”, pois ambas essas ideologias estão alicerçadas na interpretação distributiva e franciscana da Bíblia.
Assim os mesmos problemas da maioria dos povos persistem, se mantêm sem resolução há séculos, pois as pessoas e os governantes, recusam-se a utilizar a pragmática mentalidade científica e insistem com os repetidos raciocínios errados da mentalidade religiosa e escolástica. A explosão demográfica, as multidões de miseráveis e ignorantes, as fomes e as epidemias se repetem, as guerras fratricidas continuam. E sabemos que idéias e filosofias erradas levam a atos e resultados errados. A maioria dessas populações e seus governos continua se voltando para os santos e deuses, suplicando e aguardando as “providências divinas”, escorada na mentalidade antiga e parada no tempo dos alienados e arcaicos princípios religiosos, em vez de enveredar pelo trabalho eficiente, pela excelência na produção, pela educação científica e racional do povo, pelo desenvolvimento da inteligência e da pesquisa tecnológica, pelas ações pragmáticas, realistas e de resultado. Continuamos enviando as nossas crianças para serem educadas por clérigos fundamentalistas e equivocados, muitos pedófilos até; seguimos dando aos nossos filhos, como exemplo de homem ideal, o Cristo bíblico, um carpinteiro falhado, que não se interessava pelo trabalho produtivo, sem a preocupação com o dia seguinte, que nunca se casou, nem teve filhos para educar e que vivia totalmente alienado, pensando somente em como escapar desta vida terrena, terrivelmente penosa, e se refugiar no que ele chamava de céu, ou paraíso, na proteção freudiana do pai... Que ajuda válida podem nos dar os conselhos desse suposto filho de deus que se adaptem às necessidades da vida atual? Qual o pai que desejaria para marido de sua filha, ou qual a mulher que gostaria de ter como esposo, alguém como o Cristo, sonhador, visionário, desconhecedor das regras da higiene, improdutivo e vivendo à custa do trabalho dos outros?
Podemos relembrar, por exemplo, quando no Brasil, nos anos 90, por incompetente falta de previsão científica no enfrentamento dos problemas hídricos, em meio duma terrível situação de escassez de chuvas, que diminuiu o nível dos reservatórios de tal modo que se caminhava para a necessidade de cortar o fornecimento da energia hidroelétrica, o famoso “apagão”, muitas pessoas importantes da máquina estatal e da política, declaravam abertamente nos meios de comunicação que a única solução viável era “rezar para que o São Pedro se resolvesse a mandar as faltantes águas...”, de preferência com rezas e missas do popular padre Marcelo...
segunda-feira, 18 de maio de 2009
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